Entrevista: Dr. Joel de Andrade
Natural de Criciúma, Santa Catariana, desde 2005 o médico, doutorando do COPPEAD e pesquisador do CESS, Joel de Andrade, comanda a SC Transplantes, com a função de coordenar todas as atividades que envolvam captação e transplante de órgãos em Santa Catarina. Neste período, sob a sua coordenação, o número de doações de órgãos no estado catarinense cresceu vertiginosamente.
Confira a entrevista concedida por ele e saiba mais sobre este importante trabalho desenvolvido no sul do Brasil, alinhado com as principais ideias de nosso Centro.
1) Líder entre os estados brasileiros na doação de órgãos, Santa Catarina consolida-se hoje também como referência internacional. Dados deste ano revelam que o índice catarinense de doadores de múltiplos órgãos por milhão de população (pmp) é de 36,8, mais do que o dobro da média nacional, que é de 14,6. Quais os pontos vitais do SC Transplantes para esta efetividade exemplar e de êxito contínuo?
Dr. Joel de Andrade: O sucesso do trabalho do SC Transplantes tem por base alguns elementos. O primeiro deles é uma opção, muito clara, pela educação dos profissionais de saúde de Santa Catarina como a base para a real transformação dos resultados. Já há algum tempo, o SC Tranplantes investe em torno de R$ 500 mil por ano na educação dos coordenadores hospitalares de transplantes, nas mais diversas etapas do processo, desde a identificação até a manutenção clínica, diagnóstico de morte encefálica até a mais complexa e trabalhosa de todas as etapas, que é a entrevista familiar para doação. Além disso, existem também cursos de bancos de tecido ocular e de preparação de salas cirúrgicas, por exemplo.
Há, entre nós, uma crença fundamental de que a educação é o grande elemento que pode transformar a realidade. E, óbvio, paralelo a questão da educação, nos trabalhamos a organização da coordenação de transplante, no processo de procura e doadores em cada um de nossos hospitais, dando prioridade para aqueles que têm maior impacto. Atualmente, dez hospitais de Santa Catarina são responsáveis por 75% das doações. Os outros 39 hospitais são responsáveis por 25% das doações. Então, sempre temos um foco de trabalho nos hospitais mais importantes, naqueles que proporcionam um maior número de doações. Além disso, nos últimos quatro anos, trabalhamos com a profissionalização dos coordenadores de transplante, ou seja, os profissionais de saúde que fazem a procura de doadores. Eles têm, além de um sistema de remuneração, um plano de metas de trabalho, que é aplicado e revisto em cada período e nos ajuda, assim, a buscar resultados cada vez melhores.
De certa forma, complementando toda esse processo, criamos uma auditoria contínua nos principais hospitais para verificar qual o número de mortes encefálicas existe em cada uma dessas instituições. Isso nos permite ver, além das notificações e das doações efetivas, quantos pacientes falecem nestes hospitais e se existem, eventualmente, escapes, ou seja, mortes encefálicas que não são comunicadas à central.
Ainda, acrescentaria mais duas informações. Nós, eventualmente, trabalhamos com algum tipo de esclarecimento à população, no entanto, sistematicamente não compramos nenhum tipo de publicidade ou propaganda dirigida à população para que as pessoas mudem determinadas atitudes com relação á doação. Na contramão disso, jamais deixamos de atender a imprensa quando as pautas jornalísticas se referem aos resultados do nosso trabalho ou às outras questões que envolvam a doação de órgãos em Santa Catarina e até mesmo outros problemas que envolvam o transplante de órgãos em nosso Estado.
Esse conjunto, esse ambiente, é que nos permite nos dez últimos anos ser melhor estado do Brasil em doação, com mais do que o dobro da média nacional em transplante de órgãos.
2) Como o modelo espanhol influencia no sistema catarinense?
Dr. Joel de Andrade: O modelo espanhol influencia de forma muito importante o nosso sistema. Muitos confundem o modelo espanhol com a simples presença de coordenadores hospitalares de transplantes nas diversas instituições de saúde. Não se trata disso, o modelo espanhol leva em conta várias questões, como, por exemplo, o perfil dos profissionais que irão fazer coordenação de transplantes.
Em Santa Catarina, mais de 75% dos coordenadores hospitalares de transplantes, que são apenas médicos ou enfermeiros, trabalham em áreas críticas do hospital. Ou seja, centros cirúrgicos, recuperação pós-anestésica, emergência ou unidades de terapia intensiva. Esse é um dos primeiros pontos em comum com a Espanha. O outro é, já abordado, a ampla e irrestrita atenção aos meios de comunicação, sempre que a imprensa demanda qualquer questão, estamos prontos para atendê-la.
Além disso, existe também a retribuição financeira para atividade de coordenação. Hoje, no Brasil, Santa Catarina é o único estado que conseguiu capilarizar recursos federais e fazer com que, do Governo Federal, eles passem por todo o Estado, pelos municípios e entrem para os hospitais.
Além disso, é muito importante salientar que estes profissionais, médicos e enfermeiros, que fazem coordenação de transplantes em Santa Catarina, têm, quase todos, o perfil que mescla as habilidades técnicas, que são extremamente necessárias para que ajudem no diagnóstico de morte encefálica, para cuidar do potencial doador, entrevistando as famílias, mas também atividades administrativas, que cuidam dos processos que estão em torno da doação e dos transplantes dentro das respectivas instituições , tornando estas atividades cada vez mais fluidas, com resultados positivos.
Existe também o elemento da educação, que já foi ressaltado. Assim como na Espanha, que investe pesado em educação, de forma bastante complexa, a Central Estadual apoia as iniciativas em qualquer hospital catarinense que tenha ou que queira ter atividade de doação, mesmo que eventual. Em Santa Catarina, todos reconhecem que a Central de Transplante existe e atua no sentido de facilitar todo o processo.
Também vem da Espanha o conceito de que deve haver uma boa relação em toda extensão dessa rede. Ou seja, desde a coordenação estadual até os hospitais, passando pelos meios de ligação, que são as pessoas que trabalham no nível supra-hospitalar e mesmo os que que trabalham indiretamente para central. Neste sentido, são dois profissionais de enfermagem e um médico, que são capacitados para realizar esta ponte para que todos tenhamos, através dos diversos contatos, que são desenvolvido durante o ano, uma relação muito boa e o estímulo pra seguir trabalhando e buscando melhores resultados.
3) Como o senhor percebe a importância da relação entre o Governo do Estado e os demais setores da sociedade civil para que o sistema de transplantes realmente funcione?
Dr. Joel de Andrade: Eu diria que existem várias interfaces, mas a principal delas é que, para termos bons resultados de doação, a organização do sistema de saúde e a sua estrutura, pública e privada, funcionem complementarmente e da melhor forma possível. As famílias que procuram o sistema de saúde e encontram nele uma resposta ruim, um tratamento inadequado e que resulta, eventualmente, em morte encefálica, a insatisfação com sistema muitas vezes afasta a possibilidade de doação.
Uma outra questão fundamental é a necessidade de transparência, ou seja, é preciso que as ações que ocorrem no âmbito da coordenação estadual de transplante sejam comunicadas e sejam decisões fluidas, que essencialmente atendam as necessidades da população. Quando existem descaminhos, mentiras, qualquer desvio no sistema, isso compromete todo o processo e faz com que a população tenha dúvidas sobre a lisura do sistema, resultando, por fim na decisão de não doar, o que acontece em determinadas regiões.
Por fim, um ponto muito importante sobre relação entre a coordenação de transplantes de Santa Catarina, o Governo do Estado e a interface com a sociedade é que aqui a política de transplantes há muito tempo deixou de ser uma política de governo, ela passou a ser uma política pública de estado. São mais de seis governadores que mudaram nos últimos treze anos, mais de dez secretários estaduais de saúde mudaram neste período e em todo este tempo foi mantido o apoio e o estímulo para o que o Sistema Estadual de Transplante funcionasse bem.
4) Quais os principais pontos a serem trabalhados com as famílias para que o momento de tristeza e perda seja transformado em uma oportunidade para salvar vidas? Seria uma mudança cultural gradativa que precisa ser desenvolvida, como muitos acreditam?
Dr. Joel de Andrade: Eu diria que não. Não me parece que a gente obtenha melhores resultados com uma mudança cultural gradativa da sociedade, dos familiares e dos pacientes com relação à doação. O que parece realmente ter efeito e está provado na literatura internacional, é que quando os profissionais de saúde que interagem com estas famílias desenvolvem as melhores habilidades de comunicação, sabem realmente como fazer-se compreender e entendem os familiares com quem estão tratando, quando se estabelece uma relação de ajuda baseada no respeito, na empatia, as chances de doação aumentam sobremaneira mesmo que a família jamais tenha escutado ou tenha pensado em relação à doação. Então, ressalto, mais uma vez, a grande importância de treinarmos profissionais de saúde em comunicação de notícias em situações críticas, ou seja, comunicação de más notícias, para que eles entendam os familiares, para que eles consigam traduzir os familiares, e para que eles novamente se façam entender de modo adequado. Quando uma mãe adentra um hospital buscando ver um filho que está internado na terapia intensiva e ela encontra um médico ou enfermeiro daquela unidade e pergunta: onde está meu filho? O profissional não deve de forma alguma tentar aparar a mãe, sentar e explicar algumas coisas. Se a mãe pergunta onde está seu filho, traduz-se, leve a mãe para ver o filho. Este contato, mãe e filho, na UTI, é muito mais esclarecedor que qualquer palavra que um profissional tente dar.
Então, estas técnicas efetivas de comunicação foram desenvolvidas e fizeram com que Santa Catarina migrasse de 70% de não autorização familiar, que era o resultado de 2007, para menos de 35% de não-autorização, que é o resultado atual, com tendência de decréscimo para os próximos anos. O mais importante é atender bem as famílias, é fazer laços com elas, é estabelecer um grau de empatia, e desse modo, a família sente-se apoiada. Isso tem como um efeito colateral, a boa e clara relação resulta na doação de órgãos.
5) Como o senhor percebe a relação do seu aprendizado no COPPEAD com a aplicação no dia-a-dia da SC Transplantes?
Dr. Joel de Andrade: A convivência acadêmica no COPPEAD, não somente com meu orientador, professor Kleber Figueiredo, como com vários colegas do CESS, fizeram eu perceber a realidade do nosso trabalho com outros olhos. Hoje eu consigo enxergas várias deficiências dentro do Sistema de Transplantes de Santa Catarina que antes não percebia. Consigo colocar perguntas onde antes só cabiam convicções, e, desse modo, algumas questões fundamentas para serem resolvidas a partir do meu tema de tese, que é o aproveitamento dos órgãos doados. A contribuição acadêmica, do pensamento científico em todo o processo, tem ajudado muito. Ainda mais dentro do CESS, onde meus colegas possuem a real vivência da questão dos serviços de saúde. Através deles recebo contribuições imensuráveis que nos ajudam a repensar a realidade do nosso sistema, que nos permite reinventar o que fazemos e seguir crescendo, com melhores resultados.
* Mensalmente, iremos publicar entrevistas com um de nossos pesquisadores e também profissionais que contribuem com os trabalhos desenvolvidos em nosso Centro.