por Jessica Silva, M.Sc., Pesquisadora do CESS/COPPEAD
O setor farmacêutico é um dos mais regulados do mundo, existe grande preocupação com a qualidade e a integridade do produto que chega ao paciente. Entretanto, casos de falsificação de medicamentos são relatados pelo mundo todo e estima-se que a falsificação de fármacos custe em torno de 10% da receita mundial do setor (Chircu, Sultanow e Sarawast, 2014). De acordo com a OMS, 1 em cada 10 medicamentos vendidos em países em desenvolvimento são falsificados ou de qualidade comprometida. Um estudo da Universidade de Edimburgo, realizado em 2017 com o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS), estimou que aproximadamente 72.000 mortes por pneumonia infantil em países de média e baixa renda poderiam ser atribuídas ao uso de antibióticos com atividade reduzida.
O Brasil não é exceção e diversos casos de lotes falsificados circulando pela cadeia de suprimentos legítima podem ser citados. Um dos mais recentes noticiados foi o caso do Sutent® 50mg, um medicamento oncológico da Pfizer. A empresa identificou 11 lotes que não saíram de suas fábricas, mas que estavam sendo comercializados em hospitais da rede gaúcha, incluindo para pacientes atendidos pelo SUS. Dada a relevância dessa questão, a falsificação de fármacos, bem como outros aspectos do setor farmacêutico (como biofármacos, riscos e desperdício no setor, etc.), é um dos temas pesquisados no CESS/COPPEAD.
Diferente de um problema de qualidade, em que um medicamento por algum problema operacional falha em atender padrões mínimos de segurança, a falsificação é uma alteração deliberada das características de um medicamento. Essas alterações podem variar desde pequenas alterações na embalagem (como mudança do prazo de validade ou adulteração da origem do fármaco) até alterações na concentração de um princípio ativo ou sua total ausência.
Isso significa uma perda de renda para o consumidor, que gasta seus recursos para adquirir um produto cujo desempenho pode estar comprometido e, mais importante, é uma ameaça à manutenção da vida dos pacientes. A preocupação não é apenas com o fato de que uma dosagem errada possa gerar efeitos adversos, a ausência de efeito por si só já é um problema sério. Blackstone, Fuhr e Pociask (2014) citam, entre outros casos, o exemplo de um paciente que recebia injeções para tratar a anemia pós transplante de fígado, após 8 semanas recebendo as injeções sem resultados de melhora, percebeu-se que a medicação era adulterada. A falta de efeito poderia prejudicar todo o processo do transplante.
A preocupação com a entrada de medicamentos falsos na cadeia produtiva legítima, no entanto, não se restringe apenas aos países mais pobres. Países como EUA e Reino Unido já registram diversos casos de identificação e recolhimento de falsificações em seus mercados anualmente (Chircu, Sultanow e Sarawast, 2014). A própria Interpol possui, dentre suas diversas operações de combate à falsificação de produtos, uma operação focada no combate a venda online ilegal de medicamentos. A chamada “Operação Pangea” iniciou em 2008 e é uma iniciativa internacional que conta com a adesão de mais de 110 países. Em 2017, registrou a apreensão de um total de 25 milhões de medicamentos falsificados ou ilícitos ao mundo todo (o que equivale a aproximadamente US$ 51 milhões).
Fonte: Interpol – https://www.interpol.int/News-and-media/News/2017/N2017-119
Várias pesquisas identificaram a preocupação dos gestores da cadeia de suprimentos farmacêutica com essa questão, com destaque para os impactos da globalização e do crescimento das vendas online. O aumento da complexidade dos fluxos de produtos (cada vez mais players envolvidos na produção e distribuição) dentro dessa rede globalizada, aliada à maior facilidade de adquirir esses produtos por parte dos consumidores (novos canais de distribuição como farmácias online), ampliam as possibilidades de entrada de produtos ilegítimos na cadeia e tornam o monitoramento e combate a medicamentos de origem e qualidade duvidosa uma tarefa bastante complicada.
Com base nesse cenário, o desenvolvimento de uma ação de combate e monitoramento conjunta, coordenada e integrada, envolvendo diferentes players do sistema (empresas, compradores, agentes reguladores, etc) é bastante defendida como uma questão essencial para mitigação desse problema. Tecnologias de rastreabilidade e gestão de informação (como RFID e mais recentemente blockchain) surgem como ferramentas potenciais de combate a falsificação.
Ainda em fase de projeto piloto, o Brasil já trabalha com a questão da rastreabilidade de seus medicamentos, o Sistema Nacional de Controle de Medicamentos (SNCM). O objetivo desse piloto é monitorar por um ano toda a cadeia de produção, desde a produção à dispensação, e fazer as alterações necessárias para posterior implementação gradual em todo o território dentro de três anos. Em sua fase final, o sistema irá, além de armazenar informações de data de validade e lote, gerar uma identificação única para cada caixa de medicamento, facilitando o monitoramento e uso desse medicamento em todo o sistema. O país seria um dos primeiros no mundo a desenvolver esse sistema que seria uma inovação no combate a falsificação, fraude e roubo de produtos do sistema farmacêutico.
Fontes:
OMS, “Tens of thousands dying from $30 billion fake drugs trade, WHO says”. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-pharmaceuticals-fakes/tens-of-thousands-dying-from-30-billion-fake-drugs-trade-who-says-idUSKBN1DS1XJ
Chircu, A; Sultanow, E; Sarawast, S. P. Healthcare RFID In Germany: An Integrated Pharmaceutical Supply Chain Perspective. The Journal of Applied Business Research, v.30, n. 3, p. 737-752, 2014
Blackstone, E; Fuhr Jr, J; Pociaski, S. The Health and Economic Effects of Counterfeit Drugs. American Health and Drug Benefits, v. 7, n. 4, p. 216-224, 2014