Prof. Dr. Kleber Figueiredo, Professor Titular do Instituto COPPEAD de Administração e pesquisador do CESS/COPPEAD da UFRJ, discorre sobre o setor de saúde e a recente greve dos caminhoneiros.
É indiscutível que a recente paralisação dos caminhoneiros em todo pais gerou efeitos econômicos, políticos e sociais. No campo social, podemos destacar uma série de notícias sobre as consequências para os hospitais: o não abastecimento de gases medicinais, a falta de insumos para a alimentação dos pacientes, a coleta não realizada do lixo hospitalar e a falta de medicamentos como decorrência da não entrega dos mesmos por parte do setor farmacêutico. É claro que houve também efeitos econômicos. Diversos hospitais deixaram de atender pacientes, cirurgias foram desmarcadas e estes fatos, assim como ocorreu nas atividades varejistas em geral, significaram serviços não prestados.
Vamos focar nesse post a questão relacionada com a ruptura verificada no estoque de alimentos ou de medicamentos, ruptura esta decorrente da impossibilidade de os fornecedores entregarem os produtos demandados pelos hospitais. Alguém poderia dizer: se os estoques fossem maiores, esta ruptura não aconteceria.
Nos últimos tempos, muito se tem escrito e falado sobre a adoção de práticas lean na gestão de serviços de saúde. Como todos sabem, as práticas lean tiveram origem nos sistemas industriais e têm como objetivo o combate às perdas e aos desperdícios existentes. Quando pensadas nos sistemas de serviços de saúde, as práticas lean procuram reduzir os movimentos desnecessários, os retrabalhos, a falta de sincronia entre atividades e o excesso de estoques.
Normalmente, a principal perda destacada é decorrente de estoques em demasia e então se recomendam determinados procedimentos para reduzir os estoques. Entretanto, esta redução pode provocar a indisponibilidade de alguns itens e deixar o serviço sem proteção para possíveis incertezas relacionadas com um súbito aumento da demanda, ou problemas com os fornecedores que não entregam a quantidade encomendada, ou que não cumprem os prazos prometidos.
O movimento de paralisação imposto pelos caminhoneiros no Brasil é, evidentemente, munição para os críticos do modelo lean: e agora? Como é que fica? Ora, o pensamento lean não é a causa do desabastecimento. Ele foi provocado por questões relacionadas com o preço dos combustíveis e, infelizmente, foi mal gerenciado por quem deveria ter se antecipado e entendido o alcance que o movimento grevista poderia ter. Greve pode existir. Mas não há noticia de que caminhões e distribuidoras de remédios aderiram à greve. O que aconteceu foi o bloqueio de rodovias, por parte dos grevistas, impedindo o trânsito de veículos abastecedores das redes de saúde e de outros serviços essenciais. Isto deveria ser coibido pelas autoridades, pela policia rodoviária federal, que não se preparou, e pela própria coordenação da greve. As medidas relacionadas com a utilização das forças publicas não se concretizaram, soaram como ameaças, provocando a radicalização do movimento e o caos no abastecimento. Nesse caso, por maior que seja, não há estoque que consiga manter a regularidade das atividades.
Por outro lado, estoques em excesso não previnem faltas. Pesquisas mostram que a indisponibilidade de materiais é maior quando há estoque em demasia. A má organização, que às vezes se evidencia em compras mal planejadas, leva a estoques demais de determinados itens e falta de outros, justamente os mais importantes. A quantidade em estoque deve ser a suficiente para não colocar em risco o abastecimento. Estoques a mais não agregam valor, pelo contrário; no caso de medicamentos, correm o risco de serem descartados por prazo de validade vencido. O excesso esconde a ineficiência e esta muitas vezes se manifesta no custo da falta.
Há um tempo atrás, levei um grupo de alunos a uma visita ao Centro de Distribuição de uma grande rede varejista. Impressionados com o tamanho das instalações e a grande quantidade estocada, um aluno perguntou à pessoa que conduzia a visita o quanto de estoque havia ali. A resposta veio rápida: “temos o equivalente a 47 dias de vendas das lojas que abastecemos”. Pensei comigo: são prevenidos, mais de um mês e meio de cobertura. A visita prosseguia e outro aluno perguntou: qual o maior problema que vocês enfrentam no gerenciamento desse CD? Novamente uma rápida resposta: “ter que lidar com as rupturas de estoques, ter que explicar às lojas que determinados produtos estão faltando”. A aparente contradição com a resposta anterior foi logo explicada: temos itens com até 300 dias de cobertura, mas temos vários com zero dia de cobertura. Isto significava o seguinte: o volume de dinheiro investido no estoque representava o volume, em dinheiro, de 47 dias de vendas nas lojas, mas este enorme estoque não garantia que não houvesse falta de produtos, demonstrando, portanto, que ter muito estoque não previne a falta de determinados produtos.
O pensamento lean é uma realidade mundial com ganhos inequívocos de eficiência. Os ganhos obtidos pelas organizações adotantes, em termos de redução de espaços, de custos de armazenagem, de descartes ocasionados por produtos fora de prazo, superam os efeitos de eventuais desabastecimentos. Em todos os países ocorrem greves, mas a administração da greve por parte as autoridades é efetiva e efeitos como o desabastecimento de hospitais não existem.