Prof. Eduardo Rocha é Doutor em Nefrologia pela UNIFESP. Coordenador Executivo do Programa GEPETTO-COPPEAD. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador colaborador do CESS. E-mail: <erocha@hucff.ufrj.br>.
“A educação é a arma mais poderosa que pode ser usada para mudar o mundo”.1
A mais famosa citação atribuída ao Presidente Nelson Mandela – que neste mês de julho teria completado 100 anos de vida – é uma síntese do poder transformador desta maravilhosa ferramenta, que une todos aqueles que têm uma mensagem a ser compartilhada: a Educação.
Em um mundo onde a diferença entre a crescente demanda de órgãos e tecidos para transplantes e a reduzida oferta dos mesmos aumenta progressivamente, muitos são os profissionais de saúde pública que têm dedicado seu tempo à busca de uma solução desse problema que atinge a todos, de forma direta ou indireta.
O ano de 2018 marca também o décimo aniversário da Declaração de Istambul (D.O.I.), documento assinado pelos representantes de mais de 100 países, reunidos naquela cidade da Turquia para discutir uma das principais consequências negativas da carência de doadores. Organizado a partir de uma resolução da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2004, que clamou seus membros a proteger seus cidadãos do risco do turismo para transplante e do comércio de órgãos, o encontro gerou um documento publicado simultaneamente em diferentes revistas científicas, onde países signatários também se comprometeram a criminalizar o comércio e tráfico de órgãos humanos além de promover a eqüidade no acesso ao transplante de órgãos e tecidos internacionalmente2,3.
Embora uma análise superficial do documento sugira que se trata basicamente de uma ação coercitiva contra criminosos internacionais que buscam explorar a miséria humana e se beneficiar daqueles que podem pagar por uma extensão de vida através de um órgão transplantado, a D.O.I. é uma grande chamada para a necessidade de organizarmos, em cada região do planeta, sistemas de detecção de óbitos e reciclagem dos órgãos dos falecidos, através de critérios pré-estabelecidos pela sociedade, respeitando valores e culturas locais.
O “Modelo Espanhol de Transplantes” surgiu como o melhor sistema para reduzir o número de pessoas que aguardam por um órgão ou tecido nas longas listas de espera. Baseado nas regras estabelecidas pela Organização Nacional de Transplantes (ONT) na década de 80, este modelo, financiado e regulado pelo governo federal espanhol, estimula a formação de profissionais da saúde – os coordenadores intra-hospitalares de transplantes – treinados para as etapas relacionadas ao processo de doação de órgãos e tecidos: detecção de potenciais doadores em unidades de terapia intensiva, confirmação de morte encefálica, manutenção circulatória dos mesmos, entrevista familiar e logística da cirurgia de retirada e distribuição dos órgãos doados 4. Desde a criação do primeiro curso de curta duração, em 1991, cerca de 20.000 profissionais da Espanha e de todos os continentes foram treinados, resultando em um significativo aumento no número de doadores naquele país. No decorrer das últimas décadas, os cursos foram se espalhando por vários países e ampliando o número de profissionais dedicados à doação de órgãos e, consequentemente, o número de doadores. Croácia, Portugal e Irã são apenas alguns exemplos onde o número de doadores cresceu significativamente após a implantação deste modelo de formação profissional.
No Brasil, os estados da região sul, liderados por Paraná e Santa Catarina, têm obtido taxas médias de doação de órgãos superiores a muitos países europeus e aos Estados Unidos, graças à adoção bem sucedida do modelo espanhol 5. No entanto, nem todos os estados brasileiros conseguiram desenvolver programas de doação eficientes, resultando em iniquidade no acesso aos transplantes de órgãos, apesar do financiamento universal pelo SUS. Atualmente, quem nasce em um estado do norte ou nordeste brasileiro – com exceção do Ceará – tem chances muito reduzidas de receber um órgão transplantado, quando comparado a quem nasce nos estados do sul do país.
O mesmo fenômeno é observado nos Estados Unidos, onde o “Modelo Norte-Americano de Transplantes” é utilizado. Baseado na atividade de Organizações Não-Governamentais sem fins lucrativos, denominadas “Organizações de Procura de Órgãos – OPOs”, e na cooperação público-privada com forte regulação federal, 58 áreas de cobertura são monitoradas intensamente à procura de potenciais doadores. Devido à variada efetividade entre as OPOs, cidadãos do estado de Nova-Iorque, por exemplo, aguardam muito mais tempo na fila de espera por um órgão do que aqueles residentes no estado vizinho da Philadelphia 6.
A diferença na performance das OPOs, no caso dos EUA, ou das CNCDOs – centrais estaduais de transplantes do Brasil –, poderia ser minimizada através da adoção de um programa de formação profissional voltada para a gestão de processos e pessoas, tais como as oferecidas pelas escolas de negócio espalhadas pelo mundo. Problemas comuns a empresas públicas ou privadas fazem parte do dia-a-dia de uma central de transplantes ou OPO; logística, gestão de pessoas, custo-efetividade, marketing, sustentabilidade, negociação, planejamento estratégico ou financeiro ou tomada de decisões em situações de incerteza são apenas exemplos de situações diárias de quem se dedica integralmente à doação de órgãos e tecidos.
Nesse sentido, o programa GEPETTO, voltado para a Gestão, Ensino e Pesquisa em Transplantes de Tecidos e Órgãos foi criado pelo COPPEAD para contribuir no aprimoramento destes profissionais e já resultou, em seu curto tempo de existência, em um número significativo de artigos acadêmicos publicados (7-10), além da especialização e pós-graduação de gestores da área de saúde que atuam nas centrais de transplantes (CNCDOs) de diferentes estados do Brasil.
Os próximos passos serão voltados para a formação (e informação) de um público ainda maior de cidadãos conscientes para a importância da doação, única forma de reduzir o grande número de vítimas que ainda morrem à espera de um órgão que não chega. Afinal, como nos alerta o professor José Luis Escalante, diretor do programa de transplantes do Hospital Gregório Marañon, de Madri: “Sin donantes, no hay trasplantes”
Referências Bibliográficas
- Nelson Mandela, S. K. Hatang, Sahm Venter (2012) Notes to the Future: Words of Wisdom.
- The Declaration of Istanbul on Organ Trafficking and Transplant Tourism. Clin J Am Soc Nephrol 2008; 1227–1231.
- World Health Assembly Resolution 57.18, Human organ and tissue transplantation. http://www.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA57/A57_R18-en.pdf. May 22, 2004,
- El modelo español de coordinación y trasplantes. Matezans R (editor). ONT, 2008. ISBN: 978-84-7885-456-1
- Registro Brasileiro de Transplantes. Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). www.abto.org.br
- Alcorn T. New York has world-class hospitals. Why is it so bad for people in need of transplants? New York Times,11 de julho de 2018.
- LENZI, J.A. ; SARLO, R. ; ASSIS, A. ; PONTE, M. ; PAURA, P. ; ARAÚJO, C.; ROCHA, E. . Family Informed Consent to Organ Donation-Who Performs Better: Organ Procurement Organizations, In-Hospital Coordinators, or Intensive Care Unit Professionals?. TRANSPLANTATION PROCEEDINGS, v. 46, p. 1672-1673, 2014.
- ARAUJO, C.; SIQUEIRA, M. . Brazilian Healthcare Professionals: A Study of Attitudes Toward Organ Donation. TRANSPLANTATION PROCEEDINGS, v. 48, p. 3241-3244, 2016.
- SARLO, R. ; PEREIRA, G. ; SURICA, M. ; ALMEIDA, D. ; ARAÚJO, C.; FIGUEIREDO, O. ; ROCHA, E. ; VARGAS, E. . Impact of Introducing Full-time In-house Coordinators on Referral and Organ Donation Rates in Rio de Janeiro Public Hospitals: A Health Care Innovation Practice. TRANSPLANTATION PROCEEDINGS, v. 48, p. 2396-2398, 2016.
- DE OLIVEIRA, P.C. ; MUCCI, S. ; SILVA E SILVA, V. ; LEITE, R.F. ; PAGLIONE, H.B. ; ERBS, J.L. ; ARAÚJO, C.A.S. ; SCHIRMER, J. ; DE AGUIAR ROZA, B. . Assessment of Factors Related to Adherence to Treatment in Liver Transplantation Candidates. TRANSPLANTATION PROCEEDINGS, v. 48, p. 2361-2365, 2016.